Quem é a figura descrita em Ezequiel 28?
O rei sacerdote de tiro? Um anjo caído? (Uma analise de Ezequiel 28 através do
contexto imediato e histórico)
O propósito deste texto é discutir
quem realmente é a figura descrita em Ezequiel 28. A ideia popular é que na
verdade esse texto faz uma descrição de lúcifer, satanás, o anjo que queria
assumir o lugar Deus e torna-se semelhante a ele. Na verdade essa é uma ideia institucional, ou
seja, boa parte das igrejas evangélicas, principalmente as da linha
pentecostal, acredita de forma inquestionável que esse texto fala de lúcifer.
Porém uma análise no contexto imediato do texto de Ezequiel, principalmente nos
três capítulos que antecedem o 28 e os dois capítulos posteriores, revela outra
ideia. Sobre esse tipo de interpretação que as linhas teológicas impõem adverte
Henry A. Virkler em seu famoso livro Hermenêutica avançada:
"Há um grande perigo, uma
vez que tenhamos aderido a determinada escola de pensamento, ou adotado certo
sistema de teologia, de ler a BÍBLIA à luz dessa escola ou sistema e encontrar
seus característicos distintivos naquilo que lemos."
O que Virkler que dizer é que somos
muitas vezes induzidos a ver determinadas coisas e entender de determinada
maneira certas passagens bíblicas por que estamos dentro de uma corrente de
pensamento. Essa corrente teológica nos influencia de tal forma que
inconscientemente entendemos certas passagens bíblicas de uma maneira
tendenciosa. Mesmo sendo nossa corrente teológica muito respeitada e altamente
difundida. A interpretação de um texto
Bíblico deve ser em função do contexto imediato, dentro da própria bíblia, e no
contexto histórico. Devemos ter cuidado com certas interpretações prontas tipo “lata
de sardinha” que oferece uma solução rápida e imediata do texto, ainda que seja
popular.
A construção do pensamento daqueles
que acreditam que o texto fala de lúcifer é simples. Esse entendimento surge
especificamente em três descrições encontradas no texto são elas:
(I) Estiveste no Éden, jardim de
Deus...
(II) Tu eras o querubim, ungido
para proteger...
(III) no monte santo de Deus
estavas...
O primeiro argumento diz que o rei
humano de tiro Jamais esteve no Jardim do éden descrito livro de gênesis e onde
o primeiro homem habitou. só um ser poderia ter estado lá: Lúcifer. Na verdade
o termo éden ou jardim de Deus não é uma exclusividade desse texto. Dentro do
livro de Ezequiel essa expressão aparece outras vezes:
“Formoso o fiz com a multidão dos seus ramos; e todas as árvores do Éden, que estavam
no jardim de Deus, tiveram inveja dele”. Ezequiel
31:9
“Ao som da sua queda fiz tremer as nações, quando o fiz descer ao
inferno, com os que descem à cova; e todas
as árvores do Éden, a flor e o melhor do Líbano, todas as árvores que
bebem águas, se consolavam nas partes mais baixas da terra.” Ezequiel
31:16
“Os cedros, no jardim de Deus,
não o podiam obscurecer; as faias não igualavam os seus ramos, e os
castanheiros não eram como os seus renovos; nenhuma árvore no jardim de Deus se
assemelhou a ele na sua formosura.” Ezequiel
31:8
Os três textos acima fazem
referencia a faraó rei do Egito. Se assumirmos que o texto de Ezequiel 28 faz
referencia a satanás, baseados simplesmente no termo éden, devemos fazer o mesmo aqui. Porém esse texto,
de Ezequiel 31, claramente faz referencia a Faraó. Na verdade a expressão éden
é usada aqui como um jardim de nações. Éden aqui dever ser entendido na tradução
literal de seu significado: Delicia ou prazer. Jardim do éden é equivalente a
Jardim de delicia ou prazer. Na verdade faz referencia a prosperidade daquelas
nações que experimentariam o castigo que Deus traria através da Babilônia. Faça
uma leitura completa do capitulo 31 de Ezequiel
e você vai entender o que queremos dizer. Jardim do éden em Ezequiel não
tem o mesmo significado de éden em Genesis. Éden em gênesis faz referencia a um
jardim literal, em Ezequiel o sentido da palavra é figurado. Em Ezequiel, “o
jardim do éden” são todas as nações prosperas que constituíam figuradamente um
jardim de árvores de cedro que seriam derrubadas pela irá de Deus. Deus, o
supremo soberano de toda terra, tinha o domínio e controle desse jardim de
poderosas árvores de cedro, ou seja, as nações pagãs e desviadas de sua
vontade. O reino de Tiro era uma dessas “arvores nações” do jardim de Deus, ou
seja, sob o controle de Deus. Logo o rei humano de tiro estava sim no éden, o
jardim de Deus, Ou jardim de nações sob o controle soberano de Deus.
Quanto as expressões “querubim
ungido” e “monte santo de Deus”, observe
o argumento: Era muito comum entre os cananeus, povos que rodeavam o Israel
bíblico a figura do “rei sacerdote”. Melquisedeque contemporâneo de Abraão, séculos antes do
fatos citados em Ezequiel, é um exemplo claro (Gn 14.18):
“...E Melquisedeque, rei de
Salém, trouxe pão e vinho; e era
este sacerdote do Deus Altíssimo...”
Os reis pagãos eram considerados figuras
representativas diretas dos seus deuses. Sendo em muitos casos considerados
deuses também. Etbaal, rei sidonico que faz aliança com acabe, entregando sua
filha Jezabel como símbolo da aliança, é um exemplo claro de um rei sacerdote.
Assim Flávio Josefo descreve em seu
livro a historia dos hebreus.
“. Acabe, rei de Israel,
estabeleceu residência em Samaria e reinou
vinte e dois anos. Em vez de mudar as abomináveis
instituições feitas pelos reis seus predecessores, inventou
ainda outras, tanto se comprazia em superá-los na
impiedade, particularmente a Jeroboão, porque adorou, como
ele, bezerros de ouro que havia mandado fazer e acrescentou outros crimes a
esse. Desposou Jezabel, filha de Etbaal, rei dos tírios e dos
sidônios, e tornou-se idolatra, adorando falsos deuses.
Jamais mulher alguma foi mais ousada e insolente. Tão horrível
era a sua impiedade que ela não se envergonhou de
edificar um templo a Baal, deus dos tírios, de plantar
madeiras de todas as espécies e de estabelecer
falsos profetas para prestar um culto sacrílego a
essa falsa divindade. Como Acabe sobrepujava a todos os seus predecessores em
maldade, ele tinha prazer em manter sempre essa espécie de
gente junto de si.”
(a historia dos hebreus, Flavio Joséfo)
Assim o rei de tiro descrito em
Ezequiel segue a longa tradição dos reis pagãos que ao mesmo tempo eram reis e
sacerdotes das falsas divindades. No caso do rei de tiro contemporâneo de
Ezequiel, ele considerava-se um deus.
Uma nota da bíblia king James
atualizada diz acerca do texto de Ezequiel 28:
“o rei tirano é descrito como um sacerdote majestoso. Plenamente
vestido a rigor e adornado a fim de guardar o lugar santo de Deus. As nove
pedras estão entre as doze usadas pelo sacerdote levita tradicional (V15, Ex 28.17-20
com Gn 5.2)”
Bíblia King James atualizada,
pág 1542.
Textos antigos descobertos pela a arqueologia no fim do
século XIX revelam como era comum essa tradição de reis sacerdotes, que tinham
seu poder monárquico apoiado no fator religioso e místico. Um dos texto mais
conhecidos é a inscrição real de Lugalzagesi ( 2296 - 2271 A.C.). Veja o que diz essa inscrição:
Lugalzaggesi: rei de UruK.
Rei do país,
Sacerdote purificador do deus An (deus de
Uruk),
Profeta de Nidaba (deusa pessoal do rei),
Bem visto por An (deus de Uruk),
Grande governante de Enlil (deus patrono da
cidade de Eridu),
Dotado de grande inteligência por Enki (deus
patrono de Eridu),
Eleito de Utu (deus solar da cidade de Larsa),
Grande ministro de sin (deusa lunar de Larsa),
General supremo de Utu (deus solar),
Cuidador Inanna (deusa da justiça acadiana)
(...)
Do amanhecer ao poente, Enlil eliminou o
medo.
Todos os países viverão em paz e se
alegrarão.
Todas as dinastias de Sumer e os governantes
de todos os países se prostrarão em Uruk ante a sua suprema lei.
(Inscrição real de Lugalzaggesi)
(História
antigua del próximo oriente: mesopotamya e Egipto, pág. 136, Joaquin sanmártin,
editora akal)
Observe os títulos atribuídos ao rei Lugalzaggesi e
compare com os títulos atribuídos ao rei de Tiro e perceba as semelhanças.
Assim podemos entender
claramente as expressões “querubim escolhido” e “monte santo de Deus”. Como
caricaturas de um sacerdote levita e de Sião o verdadeiro monte santo. Apesar
de suas vestes muito elegantes, não passava de um falso sacerdote. Assim
ironicamente ele é considerado “como estando no monte santo de Deus” e “um
querubim protetor” (referencia as imagens dos dois querubins que estavam diante
da arca de Deus).
Há ainda um argumento que faz uma dicotomia
entre o inicio do capitulo 28 que se refere ao “príncipe de tiro” e a partir do
versículo 12 a lamentação agora é dirigida ao “rei de tiro”. Dizem que “o
príncipe de tiro” é o rei humano e o “rei de tiro” é o rei espiritual, satanás.
Porém percebemos que a primeira lamentação faz referencia ao rei humano de tiro
em seu aspecto de monarca e a segunda lamentação faz referencia ao rei humano
de tiro em seu aspecto de sacerdote.
Em seu Manual popular de
duvidas, enigmas e contradições da bíblia escreve Norman Geisler:
“Os
eruditos evangélicos têm sustentado diferentes posições com relação à
identidade do príncipe de Tiro. Alguns consideram que a linguagem do capítulo
28 é altamente poética, com figuras de expressão que têm o propósito de enfatizar
a arrogância do príncipe de Tiro. Esses comentaristas entendem que se trata de
um príncipe humano, embora haja divergências quanto a quem seja exatamente tal
pessoa. Alguns o identificam como tendo sido Ethbaal III, que reinou de cerca
de 591 a 572 a.C. Outros o identificam como Ithobal II, que pode ter sido a
mesma pessoa, com um nome diferente.
Alguns comentaristas propõem que a
linguagem empregada não pode ser aplicada a nenhuma pessoa especificamente, mas
que há uma personificação da própria cidade. O "rei" serviria assim
como um símbolo do governo e do povo como um todo.
Outros
comentaristas argumentam que os versículos de 1 a 10 referem-se a um príncipe
humano, mas que os versículos de 11 a 19 referem-se a Satanás. Os que defendem
esta posição apontam para a mudança de referência de "príncipe (nagid) de
Tiro", do versículo 2, para "rei de Tiro" (nielek), no
versículo 12. Esta mudança, de príncipe para rei, considerada em conjunto com
certas afirmações, tais como "estavas no Éden" (v. 13), "tu eras
querubim da guarda ungido" (v.14), e "perfeito eras nos teus
caminhos, desde o dia em que foste criado" (v. 15), podem indicar que esta
seção seja sobre Satanás. Não sendo assim, outros entendem tais frases como
simples referências hiperbólicas (a expressão de um exagero como figura para
enfatizar algo) aplicáveis ao príncipe humano e ao rei.
Todos os comentaristas conservadores
concordam, entretanto, que o capítulo 28 é uma profecia contra a cidade de Tiro
e seu governante, não importando quem tenha sido ele. Este exaltara-se acima de
Deus e merecia o juízo que o Senhor lhe traria. Embora a identidade desse
príncipe e rei seja uma questão controvertida, a aplicação desta passagem
estende-se a todos os que se exaltam em orgulho e arrogância contra Deus, não
importando se são reis, demônios ou pessoas comuns. E, é claro, Satanás é o
caso de maior destaque entre todas essas orgulhosas criaturas.”
(Manual
popular de duvidas enigmas e contradições da bíblia, Norman Geisler e Thomas
Howe, editora mundo cristão, pág 295 e 296)
Concordamos com a conclusão de Geisler que o
quê deve ser observado nesse texto, acima de qualquer discursão, é o pecado do
orgulho e da prepotencia que são condenados pelo senhor nesse texto.
Porém não aceitamos a ideia pré-fabricada de que esse texto se refere ao rei
espiritual de tiro, Satanás, por apenas conter, como diz Geisler, expressões
hiperbólicas. Na verdade figuras de linguagem acerca do rei humano, não espiritual,
mas literal de tiro, que era orgulhoso, prepotente e exibido, e a partir de sua
arrogância pode ser comparado com satanás, por compartilhar do mesmo pensamento
soberbo. Assim o texto faz referencia direta ao rei sacerdote de tiro e por
extensão da ideia, por via de comparação, a satanás.