quinta-feira, 4 de julho de 2013

Quem é a figura descrita em Ezequiel 28? O rei sacerdote de tiro? Um anjo caído? (Uma analise de Ezequiel 28 através do contexto imediato e histórico.)

Quem é a figura descrita em Ezequiel 28? O rei sacerdote de tiro? Um anjo caído? (Uma analise de Ezequiel 28 através do contexto imediato e histórico)

             O propósito deste texto é discutir quem realmente é a figura descrita em Ezequiel 28. A ideia popular é que na verdade esse texto faz uma descrição de lúcifer, satanás, o anjo que queria assumir o lugar Deus e torna-se semelhante a ele.  Na verdade essa é uma ideia institucional, ou seja, boa parte das igrejas evangélicas, principalmente as da linha pentecostal, acredita de forma inquestionável que esse texto fala de lúcifer. Porém uma análise no contexto imediato do texto de Ezequiel, principalmente nos três capítulos que antecedem o 28 e os dois capítulos posteriores, revela outra ideia. Sobre esse tipo de interpretação que as linhas teológicas impõem adverte Henry A. Virkler em seu famoso livro Hermenêutica avançada:

"Há um grande perigo, uma vez que tenhamos aderido a determinada escola de pensamento, ou adotado certo sistema de teologia, de ler a BÍBLIA à luz dessa escola ou sistema e encontrar seus característicos distintivos naquilo que lemos."

         O que Virkler que dizer é que somos muitas vezes induzidos a ver determinadas coisas e entender de determinada maneira certas passagens bíblicas por que estamos dentro de uma corrente de pensamento. Essa corrente teológica nos influencia de tal forma que inconscientemente entendemos certas passagens bíblicas de uma maneira tendenciosa. Mesmo sendo nossa corrente teológica muito respeitada e altamente difundida. A interpretação  de um texto Bíblico deve ser em função do contexto imediato, dentro da própria bíblia, e no contexto histórico. Devemos ter cuidado com certas interpretações prontas tipo “lata de sardinha” que oferece uma solução rápida e imediata do texto, ainda que seja popular.

         A construção do pensamento daqueles que acreditam que o texto fala de lúcifer é simples. Esse entendimento surge especificamente em três descrições encontradas no texto são elas:

(I) Estiveste no Éden, jardim de Deus...
(II) Tu eras o querubim, ungido para proteger...
(III) no monte santo de Deus estavas...

          O primeiro argumento diz que o rei humano de tiro Jamais esteve no Jardim do éden descrito livro de gênesis e onde o primeiro homem habitou. só um ser poderia ter estado lá: Lúcifer. Na verdade o termo éden ou jardim de Deus não é uma exclusividade desse texto. Dentro do livro de Ezequiel essa expressão aparece outras vezes:

“Formoso o fiz com a multidão dos seus ramos; e todas as árvores do Éden, que estavam no jardim de Deus, tiveram inveja dele”. Ezequiel 31:9

“Ao som da sua queda fiz tremer as nações, quando o fiz descer ao inferno, com os que descem à cova; e todas as árvores do Éden, a flor e o melhor do Líbano, todas as árvores que bebem águas, se consolavam nas partes mais baixas da terra.” Ezequiel 31:16

“Os cedros, no jardim de Deus, não o podiam obscurecer; as faias não igualavam os seus ramos, e os castanheiros não eram como os seus renovos; nenhuma árvore no jardim de Deus se assemelhou a ele na sua formosura.” Ezequiel 31:8

           Os três textos acima fazem referencia a faraó rei do Egito. Se assumirmos que o texto de Ezequiel 28 faz referencia a satanás, baseados simplesmente no termo éden,  devemos fazer o mesmo aqui. Porém esse texto, de Ezequiel 31, claramente faz referencia a Faraó. Na verdade a expressão éden é usada aqui como um jardim de nações. Éden aqui dever ser entendido na tradução literal de seu significado: Delicia ou prazer. Jardim do éden é equivalente a Jardim de delicia ou prazer. Na verdade faz referencia a prosperidade daquelas nações que experimentariam o castigo que Deus traria através da Babilônia. Faça uma leitura completa do capitulo 31 de Ezequiel  e você vai entender o que queremos dizer. Jardim do éden em Ezequiel não tem o mesmo significado de éden em Genesis. Éden em gênesis faz referencia a um jardim literal, em Ezequiel o sentido da palavra é figurado. Em Ezequiel, “o jardim do éden” são todas as nações prosperas que constituíam figuradamente um jardim de árvores de cedro que seriam derrubadas pela irá de Deus. Deus, o supremo soberano de toda terra, tinha o domínio e controle desse jardim de poderosas árvores de cedro, ou seja, as nações pagãs e desviadas de sua vontade. O reino de Tiro era uma dessas “arvores nações” do jardim de Deus, ou seja, sob o controle de Deus. Logo o rei humano de tiro estava sim no éden, o jardim de Deus, Ou jardim de nações sob o controle soberano de Deus.

          Quanto as expressões “querubim ungido” e  “monte santo de Deus”, observe o argumento: Era muito comum entre os cananeus, povos que rodeavam o Israel bíblico a figura do “rei sacerdote”. Melquisedeque  contemporâneo de Abraão, séculos antes do fatos citados em Ezequiel, é um exemplo claro (Gn 14.18):

“...E Melquisedeque, rei de Salém, trouxe pão e vinho; e era este sacerdote do Deus Altíssimo...”

        Os reis pagãos eram considerados figuras representativas diretas dos seus deuses. Sendo em muitos casos considerados deuses também. Etbaal, rei sidonico que faz aliança com acabe, entregando sua filha Jezabel como símbolo da aliança, é um exemplo claro de um rei sacerdote. Assim Flávio Josefo  descreve em seu livro a historia dos hebreus.

 “. Acabe, rei de Israel, estabeleceu residência em Samaria e reinou vinte e dois anos. Em vez de mudar as abomináveis instituições feitas pelos reis seus predecessores, inventou ainda outras, tanto se comprazia em superá-los na impiedade, particularmente a Jeroboão, porque adorou, como ele, bezerros de ouro que havia mandado fazer e acrescentou outros crimes a esse. Desposou Jezabel, filha de Etbaal, rei dos tírios e dos sidônios, e tornou-se idolatra, adorando falsos deuses. Jamais mulher alguma foi mais ousada e insolente. Tão horrível era a sua impiedade que ela não se envergonhou de edificar um templo a Baal, deus dos tírios, de plantar madeiras de todas as espécies e de estabelecer falsos profetas para prestar um culto sacrílego a essa falsa divindade. Como Acabe sobrepujava a todos os seus predecessores em maldade, ele tinha prazer em manter sempre essa espécie de gente junto de si.”
(a historia dos hebreus, Flavio Joséfo)

            Assim o rei de tiro descrito em Ezequiel segue a longa tradição dos reis pagãos que ao mesmo tempo eram reis e sacerdotes das falsas divindades. No caso do rei de tiro contemporâneo de Ezequiel, ele considerava-se um deus.

            Uma nota da bíblia king James atualizada diz acerca do texto de Ezequiel 28:

“o rei tirano é descrito como um sacerdote majestoso. Plenamente vestido a rigor e adornado a fim de guardar o lugar santo de Deus. As nove pedras estão entre as doze usadas pelo sacerdote levita tradicional (V15, Ex 28.17-20 com Gn 5.2)”
 Bíblia King James atualizada, pág 1542.

Textos antigos descobertos pela a arqueologia no fim do século XIX revelam como era comum essa tradição de reis sacerdotes, que tinham seu poder monárquico apoiado no fator religioso e místico. Um dos texto mais conhecidos é a inscrição real de Lugalzagesi ( 2296 - 2271 A.C.). Veja o que diz essa inscrição:

Lugalzaggesi: rei de UruK.
Rei do país,
Sacerdote purificador do deus An (deus de Uruk),
Profeta de Nidaba (deusa pessoal do rei),
Bem visto por An (deus de Uruk),
Grande governante de Enlil (deus patrono da cidade de Eridu),
Dotado de grande inteligência por Enki (deus patrono de Eridu),
Eleito de Utu (deus solar da cidade de Larsa),
Grande ministro de sin (deusa lunar de Larsa),
General supremo de Utu (deus solar),
Cuidador Inanna (deusa da justiça acadiana)
(...)
Do amanhecer ao poente, Enlil eliminou o medo.
Todos os países viverão em paz e se alegrarão.
Todas as dinastias de Sumer e os governantes de todos os países se prostrarão em Uruk ante a sua suprema lei.
(Inscrição real de Lugalzaggesi)

(História antigua del próximo oriente: mesopotamya e Egipto, pág. 136, Joaquin sanmártin, editora akal)

Sobre o rei Lugalzaggesi veja https://pt.wikipedia.org/wiki/Lugalzagesi


Observe os títulos atribuídos ao rei Lugalzaggesi e compare com os títulos atribuídos ao rei de Tiro e perceba as semelhanças. 

               Assim podemos entender claramente as expressões “querubim escolhido” e “monte santo de Deus”. Como caricaturas de um sacerdote levita e de Sião o verdadeiro monte santo. Apesar de suas vestes muito elegantes, não passava de um falso sacerdote. Assim ironicamente ele é considerado “como estando no monte santo de Deus” e “um querubim protetor” (referencia as imagens dos dois querubins que estavam diante da arca de Deus).

             Há ainda um argumento que faz uma dicotomia entre o inicio do capitulo 28 que se refere ao “príncipe de tiro” e a partir do versículo 12 a lamentação agora é dirigida ao “rei de tiro”. Dizem que “o príncipe de tiro” é o rei humano e o “rei de tiro” é o rei espiritual, satanás. Porém percebemos que a primeira lamentação faz referencia ao rei humano de tiro em seu aspecto de monarca e a segunda lamentação faz referencia ao rei humano de tiro em  seu aspecto de sacerdote.

Em seu Manual popular de duvidas, enigmas e contradições da bíblia escreve Norman Geisler:

         “Os eruditos evangélicos têm sustentado diferentes posições com relação à identidade do príncipe de Tiro. Alguns consideram que a linguagem do capítulo 28 é altamente poética, com figuras de expressão que têm o propósito de enfatizar a arrogância do príncipe de Tiro. Esses comentaristas entendem que se trata de um príncipe humano, embora haja divergências quanto a quem seja exatamente tal pessoa. Alguns o identificam como tendo sido Ethbaal III, que reinou de cerca de 591 a 572 a.C. Outros o identificam como Ithobal II, que pode ter sido a mesma pessoa, com um nome diferente.
Alguns comentaristas propõem que a linguagem empregada não pode ser aplicada a nenhuma pessoa especificamente, mas que há uma personificação da própria cidade. O "rei" serviria assim como um símbolo do governo e do povo como um todo.
            Outros comentaristas argumentam que os versículos de 1 a 10 referem-se a um príncipe humano, mas que os versículos de 11 a 19 referem-se a Satanás. Os que defendem esta posição apontam para a mudança de referência de "príncipe (nagid) de Tiro", do versículo 2, para "rei de Tiro" (nielek), no versículo 12. Esta mudança, de príncipe para rei, considerada em conjunto com certas afirmações, tais como "estavas no Éden" (v. 13), "tu eras querubim da guarda ungido" (v.14), e "perfeito eras nos teus caminhos, desde o dia em que foste criado" (v. 15), podem indicar que esta seção seja sobre Satanás. Não sendo assim, outros entendem tais frases como simples referências hiperbólicas (a expressão de um exagero como figura para enfatizar algo) aplicáveis ao príncipe humano e ao rei.
Todos os comentaristas conservadores concordam, entretanto, que o capítulo 28 é uma profecia contra a cidade de Tiro e seu governante, não importando quem tenha sido ele. Este exaltara-se acima de Deus e merecia o juízo que o Senhor lhe traria. Embora a identidade desse príncipe e rei seja uma questão controvertida, a aplicação desta passagem estende-se a todos os que se exaltam em orgulho e arrogância contra Deus, não importando se são reis, demônios ou pessoas comuns. E, é claro, Satanás é o caso de maior destaque entre todas essas orgulhosas criaturas.”
(Manual popular de duvidas enigmas e contradições da bíblia, Norman Geisler e Thomas Howe, editora mundo cristão, pág 295 e 296)

             Concordamos com a conclusão de Geisler que o quê deve ser observado nesse texto, acima de qualquer discursão, é o pecado do orgulho e da prepotencia que são condenados pelo senhor nesse texto. Porém não aceitamos a ideia pré-fabricada de que esse texto se refere ao rei espiritual de tiro, Satanás, por apenas conter, como diz Geisler, expressões hiperbólicas. Na verdade figuras de linguagem acerca do rei humano, não espiritual, mas literal de tiro, que  era orgulhoso,  prepotente e exibido, e a partir de sua arrogância pode ser comparado com satanás, por compartilhar do mesmo pensamento soberbo. Assim o texto faz referencia direta ao rei sacerdote de tiro e por extensão da ideia, por via de comparação, a satanás.